Jornada do Anti-Herói em Joker

Santahelena
6 min readOct 22, 2019

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Cena do filme “Joker”de 2019. Todos os direitos reservados à Warner Bros.

* CONTÉM SPOILERS * * * Se você não assistiu ao filme ainda e não quer saber o que acontece nele NÃO LEIA.

Esse texto foi elaborado como um exercício de cruzar o arco narrativo presente no filme Coringa com a clássica estrutura da jornada do herói. Como estamos falando do arco narrativo de um filme de vilão, foi preciso fazer adaptações para que fosse possível transpor a jornada, muitas vezes a subvertendo, criando algo que poderia ser chamado de A Jornada do Anti-Herói.

A “Jornada do Herói” — também conhecida como “monomito” — é um conceito de estrutura de narrativa presente em mitos clássicos estudados pelo antropólogo Joseph Campbell. O termo aparece pela primeira vez em 1949, em seu livro “O Herói de Mil Faces”.

1º Ato

Mundo Ordinário

O mundo ordinário é onde se cria o contraste entre o mundo normal e convencional do personagem com o mundo estranho, novo, misterioso e repleto de perigos, no qual o herói, em tese, está por adentrar em sua jornada.

A construção e explicação desse mundo ordinário geralmente se dá nos primeiros minutos da trama. Obviamente, isso varia muito pois cada roteirista tem total autonomia para, porventura, adaptar ou até embaralhar tudo isso, subvertendo a ordem e formatos.

No caso do Joker, o mundo ordinário é apresentado nos primeiros minutos em que o filme nos introduz na vida cotidiana de Arthur Fleck, o personagem principal que virá a se tornar o Coringa.

Para o herói clássico, geralmente este mundo ordinário é um lugar seguro, agradável, meio monótono até, mas muito acolhedor.

No caso de Joker, esse mundo ordinário é sujo, opaco, em sépia, triste, miserável, deprimente. É quando a narrativa mostra ele morando e cuidando da mãe enferma em um bairro de periferia muito pobre. Os dois assistem ao programa favorito deles na televisão de noite. Arthur está visivelmente muito magro e fuma de forma contumaz, parecendo se alimentar apenas de cigarros. Para completar a construção de mundo ordinário, ele trabalha em um subemprego, como palhaço em frente à estabelecimentos comerciais.

Nesta apresentação do Mundo Ordinário, uma das cenas mais importantes é logo a primeira sequência do filme, quando Arthur está diante do espelho se maquiando para atuar como palhaço promocional.

Nela, percebe-se logo de cara, que o personagem reúne em si uma mágoa profunda. Algo que fica muito claro em seus olhos profundamente expressivos e cheios de lágrimas. O ápice da sequência é quando ele enfia os dedos indicadores das duas mãos nos cantos da boca para forçar um falso sorriso, quase como uma máscara de teatro grego sobre a sua face, estabelecendo um dilema que vai ser explorado e desenvolvido ao longo de toda a trama: as relações profundas e simbióticas entre tragédia e comédia. Vamos falar mais sobre isso adiante, mas é importante pontuar como essa primeira cena começa a desenrolar esse fio que será um condutor ao longo de toda a trama e arco do personagem.

Outra cena muito importante nessa construção de Mundo Ordinário é a sequência de Arthur no ônibus. Aqui se apresentam dois paralelos importantes para a trama. Primeiro, a clássica cena do personagem encostando, desolado, o seu rosto no vidro da ônibus em movimento.

Mais adiante, esta cena será referenciada na sequência final do filme em que Arthur, já como Coringa, encosta seu rosto no vidro da viatura policial, estabelecendo um diálogo entre as duas personas: aquela do início do arco — um Arthur Fleck desolado, destruído, famigerado — e a do final — o Joker realizado, estabelecido, se encontrando em sua verdadeira personalidade psicótica. Esse diálogo fica evidente inclusive em um dos materiais de divulgação do filme, que ao meu ver só erra na ordem em que as personas são dispostas, pois o Coringa deveria ficar, na ordem de leitura clássica de “antes e depois”, do lado direito de Arthur Fleck.

É também dentro do ônibus, ainda no Mundo Ordinário, que a trama apresenta uma das características mais inteligentes dessa nova formulação do Coringa: o transtorno de risada patológica que faz com que o personagem gargalhe quando está em situações tensas. Esta foi uma enorme contribuição do diretor Todd Philips para esse personagem que está completando quase 80 anos. E ao longo da trama essa característica torna-se decisiva para compor diversas situações-chave no filme.

Chamado à Aventura

Aqui deve ocorrer uma relutância do herói em relação ao chamado e uma grande dúvida o faz titubear e resistir ao chamado. É onde são gerados os fatores emocionais e motivacionais profundos para o herói e o enredo da trama. Geralmente, este chamado se dá na forma da apresentação de um dilema, muitas vezes interno, onde é explorado um conflito psico-emocional no ato de se empreender na aventura. Neste momento, usualmente é apresentada a missão e os objetivos que o herói terá que cumprir caso aceite a jornada, a aventura que se desenha.

Na inversão de valores da jornada do herói clássico para a do anti-herói, essa aventura pode ser entendida como o processo de descoberta do personagem como Coringa, ou seja, como um sociopata e psicopata cada vez mais frio e sanguinolento. Esta, em si, seria a aventura apresentada nesse arco narrativo do filme: a jornada de Arthur Fleck para libertar o Joker que residia adormecido dentro de si.

Então, podemos entender que o 1º chamado à esta aventura se dá na surra que o grupo de jovens delinquentes aplica em Arthur no beco, depois de terem roubado a placa da loja que ele segurava para divulgá-la. Ali é como se o mundo estivesse mais uma vez o colocando à prova e convocando-o a reagir de alguma forma. Mas, como ocorre na jornada do herói, ele titubeia, resiste, apanha calado e não atende ao chamado, recusando-o.

“É apenas depois de perder tudo que somos livres para fazer qualquer coisa”, Tyler Durden.

* * * CONTINUA * * *

As imagens utilizadas neste artigo são cenas e materiais do filme “Joker”de 2019. Todos os direitos reservados à Warner Bros.

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Raul Santahelena é autor dos livros

“Muito Além do Merchan: como enfrentar o desafio de envolver as novas gerações de consumidores” (Ed. Elsevier, 2012) LEIA AQUI

“Truthtelling: por marcas mais humanas, autênticas e verdadeiras” (Ed. Voo, 2018) LEIA AQUI

“Visceral: libere sua energia mais íntima e autêntica” (2019)

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Professor de Branding Planning na Miami Ad School/ESPM.

Coordenador de Planejamento da Miami Ad School Rio.

Mestrando em Gestão da Economia Criativa na ESPM.

Fundador do think tank “Abre Los Ojos”.

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Santahelena

Writer, author; Professor of Deepmeaning Brandbuilding; Digital & Content Executive;