Duchamp e A Fonte: um disruptivo muito antes da era da disrupção líquida

Santahelena
6 min readDec 22, 2018

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“A Fonte” é uma obra de arte hoje tida como um marco na história da arte moderna em todo o mundo. Mas nem sempre foi assim. A história por trás desse ícone de provocação por uma reinvenção do status quo mostra como haviam mentes disruptivas muito antes da era da disrupção em que vivemos.

Em 1917, o mundo vivia tempos intensos em meio a 1º Guerra Mundial enquanto Lênin tomava o poder na revolução russa. Duchamp vivia em Nova York, como hóspede convidado em um apartamento de amigos na 5ª Avenida, vivendo sob o apoio e benfeitoria de patronos mais abastados. O artista francês tinha em torno de 30 anos e morava na “cidade que nunca dorme” há menos de dois anos — tempo bastante para saber se localizar pelas ruas mais centrais, mas pouco tempo ainda para caminhar com indiferença diante de uma cidade tão estimulante.

Em uma certa tarde, Duchamp caminhava com seus dois amigos anfitriões nova iorquinos pela cidade. Subiram a 5ª Avenida e viraram a esquerda na 59th street, rumando na direção do Columbus Circle. Duchamp costumava comentar que a visão espetacular que se tinha dali, das árvores se transformando aos poucos em gigantes de concreto armado e vidros seria, para ele, uma das coisas mais incríveis do mundo.

Enquanto os dois falavam, ele pensava. Enquanto eles andavam, ele viajava com os olhos voltados para cima, girando ao redor. Após alguns minutos de caminhada, já retornando pela 5ª Avenida novamente, Duchamp simplesmente congelou diante de uma vitrine de uma loja de artigos domésticos, o estabelecimento comercial de J.L. Mott, um especialista em encanamentos. São dez para as cinco da tarde e uma onda de esfuziante excitação toma o artista francês por completo.

Após alguns minutos ele então chama o vendedor e aponta para um mictório de porcelana branca comum, de costas chatas. Seus amigos voltam a se juntar a ele e o grupo é informado por um desconfiado vendedor de que o modelo de mictório em questão é um Bedfordshire.

Comprado o mictório, Duchamp leva então, em seus próprios braços, a pesada peça de porcelana para o seu ateliê. Repousa o objeto sobre seu dorso e o gira, colocando-o literalmente de cabeça para baixo. Em seguida, o francês busca avidamente por um vidro de tinta em meio a dezenas de opções de cores. E então assina e data no lado esquerdo de sua borda externa, com o pseudônimo “R. Mutt 1917”. Pronto: o insight que vislumbrara momentos antes diante da vitrine do número 118 da 5ª Avenida estava ali concretizado diante dos seus olhos.

A tacada final

Duchamp planejava na verdade inscrever a peça “A Fonte” na Exposição dos Artistas Independentes de 1917, a maior mostra de arte moderna já montada nos Estados Unidos, da qual era membro do conselho — por isso o uso de um pseudônimo.

Aliás, o nome inventado “R. Mutt” também não teria sido escolhido ao acaso. Era da natureza de Duchamp brincar com as palavras, fazer piadas e zombar do pomposo mundo da arte. Diz-se que tratava-se de uma referência à história em quadrinhos “Mutt e Jeff”, que havia sido publicada no San Francisco Chronicle em 1907 com um único personagem, A. Mutt. Mutt era inteiramente motivado pela cobiça, um malandro imbecil com uma compulsão para jogar e engendrar planos disparatados para enriquecer rapidamente. Como também a sugestão de que a inicial “R” representa Richard, um coloquialismo francês para “sacos de dinheiro”. Assim, de forma implícita e subliminar, Duchamp pretendia que “A Fonte” fosse uma crítica velada aos colecionadores gananciosos e especuladores que capitalizavam a arte e prostituíam artistas, bem como aos diretores de museu ignorantes e pomposos.

Duchamp também queria desmascarar a farsa de que artistas são de certo modo uma forma mais elevada de vida humana. Que em tese mereceriam o status elevado que a sociedade insiste em lhes confere por supostamente possuírem inteligência, perspicácia e sabedoria excepcionais. Duchamp considerava isso um disparate. Os artistas se levam e são levados a sério demais. Por isso, ele estava de fato colocando todo o sistema em choque quando inscreveu um mictório em uma grande exposição de arte.

Como você pode supor, a peça de Duchamp, quero dizer, de R. Mutt, foi considerada um ultraje pelos pseudo-julgadores da exposição de arte. Fora julgada muito ofensiva e vulgar, até mesmo por ser em si, na visão limitada e pouquíssimo ampliada dos mesmos, apenas um mictório. Algo que não poderia jamais ser considerado um item de arte e que não seria apropriado para ser objeto de uma discussão entre a classe média puritana dos Estados Unidos.

Fonte nunca foi vista em público, ou alguma outra vez. Ninguém sabe o que aconteceu com a obra pseudônima do francês.

Legado e inspiração para os dias disruptivos atuais

Hoje sabemos que os conservadores venceram aquela batalha mas perderam a guerra de maneira espetacular já que “A Fonte” é cultuada como um ícone de arte e um ato exemplar da manifestação artística genuína em toda a sua disrupção a que se propõe.

Na cabeça efervescente e inquieta de Duchamp, ele acreditava ter inventado uma nova forma de manifestação artística. Nomeada de “readymade”, Duchamp defendia com ela que o artista podia sim selecionar o que quiser que fosse como suporte ou meio, sem nem que fosse necessário nenhum tipo de regramento, amarra ou pseudo-critério artístico. Na visão disruptiva de Duchamp, o artista estaria então libertando aquele objeto de seu significado primário, contencioso, sólido e rígido.

Duchamp queria questionar a própria noção do que constituía uma obra de arte tal como decretada por acadêmicos e críticos, que via como árbitros autoescolhidos que, em geral, não eram lá muito qualificados. A posição de Duchamp era que se uma pessoa comum ou até mesmo um artista dizia que uma coisa era uma obra de arte, tendo interferido em seu contexto e significado, ela era sim uma obra de arte. Não dependeria do sistema artístico tal definição.

Duchamp argumentava que, até aquele momento, o meio — tela, mármore, madeira ou pedra — havia ditado o modo como o artista iria ou poderia se manifestar e expressar a sua inspiração. O meio sempre vinha primeiro e só depois era permitido ao artista projetar suas ideias e expressividade sobre ele. Duchamp queria provocar uma implosão dessa lógica restritiva e aprisionante.

Com isso, Duchamp nos ensinou então que a compreensão da existência e papel de um objeto pode passar a ser totalmente fluido e vivo, interpretado a cada momento e por cada olhar como algo novo e diferente, a depender das incursões e interferências do autor, como também dos estímulos do contexto e do espírito do tempo em que aquele objeto está a ser observado e “consumido” com os sentidos. Ele simplesmente tirou a solidez do processo e o tornou líquido rompendo com as amarras sólidas e rígidas dos suportes fixos.

Pode-se dizer, sem medo de errar, que Duchamp estabeleceu ali um ato simbólico da modernidade líquida, muito antes da teoria ser cunhada pelo polonês Zygmunt Bauman.

Isso porque com “A Fonte”, Duchamp nos instiga a pensar além do significado restrito das coisas. E até mais do que isso: ele nos inspira a pensar além do papel pré-estabelecido das instituições e dos arautos do sistema estabelecido. Duchamp decretou, do alto dos seus 30 anos de idade, que a arte vive na ideia e não no objeto em si que pode inclusive, muitas vezes, aprisioná-la e asfixiá-la.

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Raul Santahelena é autor dos livros “Truthtelling: por marcas mais humanas, autênticas e verdadeiras” (Editora Voo, Junho de 2018) e “Muito Além do Merchan: como enfrentar o desafio de envolver as novas gerações de consumidores” (Editora Campus Elsevier, 2012); Keynote Speaker; Professor de Planning na Miami Ad School — ESPM; Colaborador do Meio & Mensagem e do Adnews; Gerente de Publicidade e Mídia da Petrobras.

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“Muito Além do Merchan: como enfrentar o desafio de envolver as novas gerações de consumidores” (Editora Campus Elsevier, 2012)

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Fontes de Referência:

“Isso é arte?: 150 anos de arte moderna. Do impressionismo até hoje” de Will Gompertz

Wikipedia Marcel Duchamp

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Santahelena

Writer, author; Professor of Deepmeaning Brandbuilding; Digital & Content Executive;