A Pandemia e o Fim da Era do Propósito?

Santahelena
6 min readMay 16, 2020

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Desde o início disso tudo eu tenho me cobrado muito. Venho me sentindo realmente intranquilo, inquieto — como todos estamos, afinal. Não somente por conta de tudo que está acontecendo. Mas, principalmente, por não estar conseguindo articular as ideias e os sentimentos para produzir algum tipo de reflexão mais profunda em meio a este grande experimento social global que estamos vivenciando. Vinha me sentindo frustrado por não conseguir teorizar os conceitos em meio à pandemia e as mudanças que ela provoca nos nossos hábitos e atitudes, como humanos, e também como marcas.

Meu propósito na vida é ajudar a formar humanos melhores, que por sua vez criarão e cuidarão de marcas melhores e que, por final, ou por início, vai depender da perspectiva que você queira aplicar, vão viabilizar e prover um mundo mulher (na primeira versão desse texto acabei escrevendo “mulher” em vez de “melhor” em um ato falho maravilhoso e decidi manter).

Para simplificar — ou complicar — costumo usar esse jogo de palavras em inglês “Better Humans, Better Brands, Better World”. Essa é minha razão de existir. Por isso que quero continuar respirando. Seja no trabalho, seja dando aula ou palestrando, seja vivendo, seja escrevendo ou pesquisando na academia.

Acontece que logo no início disso tudo, nos primeiros dias e semanas, a gente não tinha a exata noção do onde estávamos “nos metendo”. Bom, eu não sei quanto a vocês, mas essa “exata noção” ainda não me visitou. Até hoje, creio que não temos sequer a “mínima noção”, quanto mais a “exata noção”.

Embora seja um “senhor fator”, profundamente relevante, é claro que a pandemia não é o único fator que me faz refletir sobre o mundo tensionado que vivemos. Mas isso não é de agora, não é de hoje. Tanto que venho dedicando os últimos dois anos no meu terceiro livro, em parceria com a Carol Aragão: “Visceral”, não por acaso. Vivemos tempos viscerais e não é de hoje. Estamos submersos em um tempo presente viscoso em que as relações humanas e as relações entre humanos e instituições estão mais do que tensionadas, estão esguarniçadas, roendo. E sabemos muito bem onde essa corda arrebenta, não é mesmo?

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Acabo de dar uma aula remota online de 4 horas para 20 alunos. Uma aula sobre arquétipos, campos simbólicos, inconsciente coletivo, cérebro límbico e reptiliano. E agora estou aqui, exausto mas energizado. A aula acabou funcionando como um tremendo gatilho emocional — e intelectual — para que eu finalmente conseguisse começar a teorizar um pouco do que estamos vivendo.

É incrível sentir essa sensação depois de sei lá quantos dias de quarentena. Nada explica essa sensação de sentir que um tremendo bloqueio criativo de repente dá sinais de que vai ser transposto por uma energia represada de reflexões. Parece que eu estive em coma reflexivo e, de repente, senti meu cérebro mais profundo dar sinais de que pode pulsar novamente. É como se houvesse uma nuvem escura, carregada, dentro da qual o meu cérebro — e o meu campo de visão — estivessem aprisionados e, de repente, começasse a ser possível ver alguns raios de sol transpondo-lhe, rasgando-lhe em pedaços, afastando a ameaça de tempestade. Este foi o meu sentimento nesse pós-aula. E assim esse texto nasceu.

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Eu não acredito que a pandemia pode estar representando o fim da era do propósito, longe disso, pelo contrário. Acredito que é justamente nos momentos de crise, onde tudo se intensifica ainda mais, de forma abrupta, que é ainda mais valioso você poder contar com um propósito claro, bem definido e bem defendido, com consistência no tempo e no discurso. É o que vai conferir à você e à sua marca o que ela precisa neste momento.

O propósito é uma energia que adormece dentro de nós. Alguns poucos conseguem desvendá-lo e fazê-lo despertar. Acontece que todos nós somos essa energia. A gente vê essa energia manifestar-se em cada um ao agir, ao falar, ao apaixonar-se pelas coisas da vida, ao se engajar em causas, ao defender crenças. Mas enquanto não tiramos esse véu que repousa sobre ela, seguimos inconstantes.

Ao longo da história muitos pensadores teorizaram sobre essa energia. Lucrécio a teria chamado de “clinamen”; Hobbes de “conatos”; Espinoza de “potência de agir”’; Schopenhauer de “vontade”; Bergson de “elã vital”. Freud de “libido”*.

Portanto, se você fez o “dever-de-casa” direitinho, você foi construindo e “encorpando” esse “colchão de reputação” e energia do seu propósito ao longo dos anos. Algo que funciona como um bunker de proteção que consegue fazer com que a marca consiga passar por tudo isso de uma forma um pouco menos instável e mais segura. Mas, atenção pois isso não quer dizer se escondendo, muito pelo contrário. Afinal, não agir é, em si mesmo, uma atitude que comunica. E muito.

Além disso, o propósito é orientação. Mostra em que direção a marca deve ir neste momento. Que decisões tomar. Quais atitudes serão empenhadas. Que declarações serão dadas. Ter um propósito, ou seja, uma razão de existir clara, profunda e verdadeira, que seja intimamente comungada com as pessoas e com a sociedade, é o que lhe oferecerá um salvo-conduto, uma carga extra de fôlego, uma musculatura para superar este momento. É como ter uma poderosa bússola em meio a um terrível maremoto. Você não se desvia muito da sua rota. Pode até ter que fazer ajustes, mas o norte prevalece no final de tudo.

Claro que não é apenas isso que vai te ajudar a superar essa crise. Claro que existem muitas outras nuances e camadas de decisões e atitudes que precisam ser tomadas. E que são duras. Mas, como sempre, é o propósito que vai dar sentido a todo o resto. Ele que vai dar significado. Ele que vai ser o elo que vai costurar tudo que você for fazer neste momento com algo maior, mais elevando, com sua essência mais superior. É ele inclusive que justificar que marcas e pessoas abram mão seus resultados e lucros, de uma parte ao menos, em prol da subsistência da própria sociedade.

Sim, você também sofrerá. Claro que sairá dessa muito arranhado. Provavelmente, terá que lidar com algumas cicatrizes, até dolorosas e profundas. Mas acredite, aquele — e aquela marca — que tem um propósito claro, sairá dessa melhor e mais forte. E aquele que, neste momento grave de crise, abriu mão rapidamente do que achava que era o seu propósito, não será “perdoado”. Não pelas pessoas apenas, mas por si mesmo. Pois é justamente esses momentos que separam os verdadeiros realizadores incansáveis dos meros aventureiros e caronistas.

Afinal, é quando nos vislumbramos com o risco da morte diante dos nossos olhos que costumamos ter a clara vidência do que nos faz feliz e agentes de transformação no mundo. Não por acaso, é justo neste momento que costumamos ver “a vida passando diante dos nossos olhos”, não é mesmo?

Você já parou pra pensar que “vida vai passar diante dos seus olhos” nessa hora?

E como dizia Arnaldo Jabor — essa eu acredito que seja realmente dele — “o homem só ama quando perde”.

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Raul Santahelena

Artigo originalmente publicado no meu site pessoal www.raulsantahelena.com

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Santahelena

Writer, author; Professor of Deepmeaning Brandbuilding; Digital & Content Executive;